segunda-feira, 9 de junho de 2025

Religião, poder e silêncio

A Idade Média foi ou não foi a Idade das Trevas? Depende de quem pergunta. E, talvez mais ainda, de quem responde.

Quando olho para esse período, não o faço com os olhos frios de quem quer listar prós e contras, avanços e retrocessos. O que me atravessa é outra coisa. É quase visceral. A Idade Média, para mim, tem o gosto amargo de um tempo em que o poder religioso dominava corpos, mentes, desejos. Um tempo onde a dissidência – sexual, espiritual, afetiva – era tratada como ameaça. Onde o sagrado foi engaiolado em doutrinas, e o invisível perdeu sua fluidez para virar regra. A “luz” que se projetava vinha sempre de cima, centralizada, dura. E quem via outras luzes – mais suaves, dispersas, intuitivas – era perseguido e condenado. Como se só houvesse uma maneira de acessar o transcendental.

Claro que houve beleza naquele tempo. Catedrais que desafiam a gravidade, músicas que tocam camadas que a razão não explica. Mas nada disso muda o fato de que, para quem se reconhece numa espiritualidade plural, sincrética, autônoma – como é o meu caso – a Idade Média foi uma noite longa demais. Não por falta de ciência, mas por excesso de controle. Não foi uma era sem conhecimento, mas uma era em que certos conhecimentos foram sistematicamente sufocados. E eu não consigo romantizar isso.

Então, se me perguntam se a Idade Média foi a Idade das Trevas, eu devolvo: e se foi, mas não pelas razões que geralmente se diz? E se as trevas não estavam na ignorância, mas na arrogância de um sistema que achava que podia decidir o que era luz – e queimar o resto?

junho 09, 2025 ,,

MSN, Orkut e Outras Ruas Onde Morávamos

Houve um tempo em que a internet tinha cheiro de novidade e gosto de descoberta. Um tempo em que cada clique parecia abrir uma fresta mágica num mundo ainda sem algoritmos sufocantes, sem filtros perfeitos, sem pressa. Estamos falando dos anos 2000 – mais precisamente, entre 2006 e 2012 – quando os computadores ainda rodavam Windows XP e o barulhinho do MSN entrando ecoava como sinal de que alguém, do outro lado, pensava na gente. Era uma internet que pulsava de vida em suas imperfeições: com seus gifs piscantes, suas páginas coloridas do Orkut e seus layouts que pareciam ter sido desenhados com lápis de cor digital.

Era a era do Habbo Hotel brasileiro – aquele universo pixelado onde avatares dançavam, trocavam confidências e criavam seus próprios reinos em quartos decorados com pixel-art de afeto. Mas também era a era do Orkut, das comunidades que se tornavam confessionários públicos, e do Zapping Zone, que vibrava em sintonia com os clássicos da Disney como Hannah Montana, High School Musical, As Visões da Raven. Cada série, cada música, cada meme carregava consigo uma textura específica de tempo – quase como se, ao ouvir Bad Romance ou Firework, a gente conseguisse tocar com os dedos a atmosfera daquele quarto em que navegávamos escondidos de madrugada.

E havia também aquela estética – meio brega, meio genial – das páginas amadoras do Geocities e, anos depois, do Neocities. Sites pessoais cheios de glitter, fontes aleatórias, barrinhas de visitantes e uma ousadia visual que dizia: “isso aqui é meu”. Nada ali era padronizado. Cada espaço era expressão pura, criativa, infantil e sincera. Era uma web que ainda permitia ser feita à mão. Que era território de experimentação, não de desempenho.

Essa internet, com todas as suas cores vibrando fora da linha, deixou uma saudade que não cabe num post, nem numa playlist (embora eu tenha feito uma para tentar...). Porque o que sentimos falta não é só das ferramentas – mas da liberdade estranha e doce de se perder num lugar onde nada era muito certo, e talvez por isso, tudo fosse mais nosso.

O que é, afinal, a Verdade?

Existe uma pergunta que nos acompanha feito sombra, mesmo quando o dia parece claro: o que é verdade? Não a verdade gritante dos manuais ou a fria dos números, mas aquela que pulsa entre o que sentimos e o que sabemos. Onde, afinal, termina o fato e começa a opinião? E mais ainda – o que habita esse meio-termo silencioso, essa terra de ninguém onde boa parte do nosso saber parece acontecer?

Fatos costumam ser definidos como o que existe fora de nós, aquilo que permanece mesmo quando desviamos o olhar. Como pedras no caminho: duras, impassíveis. Mas até as pedras ganham nome, medida, sentido – e tudo isso é dado por quem as observa. A ciência, embora pretenda capturar verdades objetivas, não escapa dessa mediação. Nenhum fato nasce puro: ele atravessa teorias, instrumentos, contextos. O que chamamos de verdade empírica é, muitas vezes, uma construção sólida, sim, mas erguida sobre andaimes humanos.

Opiniões, por outro lado, são íntimas como cartas não enviadas. Elas brotam da história de quem somos, dos afetos que nos moldam, das dores que nos ensinaram a ver o mundo de certo jeito. E embora não possam ser provadas como teoremas, também carregam uma forma de verdade – mais emocional do que lógica, mais sentida do que demonstrada. Não são menos válidas por isso. Em certos casos, são até mais fiéis ao que realmente vivemos.

Entre esses dois extremos, mora o que escapa à dicotomia. Hipóteses, interpretações, saberes tácitos. Aquilo que ainda não é fato, mas também não é puro achismo. Existe um tipo de conhecimento que não se explica, mas se vive – uma intuição silenciosa que guia nossas decisões mais profundas, mesmo quando não conseguimos dar nome a ela. Talvez seja aí que resida o coração do saber: não em certezas absolutas, mas na coragem de habitar o ambíguo.

A epistemologia contemporânea já percebeu isso: que toda verdade carrega um pouco de invenção. Que todo fato é contado por alguém, de algum lugar, com alguma intenção. Saber, então, não é separar com pinça o real do ilusório, mas reconhecer os jogos de linguagem, os contextos e os afetos que moldam aquilo que chamamos de real. Porque no fim das contas, talvez a verdade seja menos uma descoberta e mais uma dança – entre o que o mundo é e o que escolhemos ver.

terça-feira, 3 de junho de 2025

junho 03, 2025

Cascata

Cai do alto de uma árvore a mais minúscula e delicada flor. Ela desce rodopiando, feito catavento, e pousa no desaguar de uma cachoeira. Segue o caminho das cascatas e, suavemente, embeleza o percurso com a sua própria fragilidade

sábado, 17 de maio de 2025

"Veneno" (2020)

A série Veneno (2020) é mais do que uma biografia televisiva — é um poema colorido à memória de Cristina Ortiz Rodríguez, a icônica “La Veneno”. Baseada no livro da jornalista trans Valeria Vegas, a série constrói não só o retrato de Cristina, mas também a própria jornada de Valeria, que se descobre e se reconstrói enquanto narra a vida de outra mulher. E é justamente nesse entrelaçamento de memórias que Veneno se torna, mais do que homenagem, uma travessia sobre identidade, representação e reparação.

Lola Rodríguez, em uma atuação absolutamente genial, dá vida à jovem Valeria com uma doçura contida, quase silenciosa — sua introspecção tímida contrasta com a explosividade de Cristina, criando uma tensão luminosa entre duas gerações trans. Valeria, com seus olhos assustados e firmes, não representa a militante caricata, mas a mulher que resiste no detalhe, no gesto contido, no corpo em processo. Ao lado dela, destacam-se também Jedet, Daniela Santiago e Isabel Torres, que interpretam Cristina em três fases distintas, cada uma entregando à personagem suas próprias feridas, força e carisma. E há ainda a maravilhosa Paca La Piraña, que interpreta a si mesma — uma das amigas mais próximas de Cristina, com quem compartilhou tanto os palcos quanto as dores da rua.

A recepção à série foi avassaladora: aclamada pela crítica, abraçada pelo público, premiada em diversos festivais e elogiada internacionalmente. Mas, como toda história que vira mito, Veneno também despertou controvérsias — e entre elas, talvez a mais contundente seja a crítica feroz feita por Lia Bracho, youtuber e mulher trans brasileira.

Lia recusa Cristina como referência. Vê nela uma figura “desequilibrada”, celebrada por uma mídia que apenas queria o espetáculo de sua agressividade. Para ela, Cristina reforçou estigmas, atacou outras travestis, e foi mais símbolo de escândalo do que de avanço. Lia não romantiza: denuncia. Diz que Cristina “morreu pela própria boca”, que a série lucrou em cima de um corpo já apagado, e que homenagens só vieram quando não era mais preciso pagar por elas.

Mas essa crítica, tão legítima quanto ferida, não está sozinha no debate. Comentários no próprio vídeo de Lia trazem contrapontos importantes. O usuário @caioxavis, por exemplo, lembra o contexto da época: sem internet, sem representações positivas, Cristina blindava sua dor com a única armadura que possuía — o exagero. “Ser afrontosa era uma forma de se proteger do preconceito. Claro que ela não tinha a cabeça no lugar depois de tanta experiência ruim.”

Outro comentário, de @gus.tavo., resgata o que a própria Luísa Marilac sempre afirma: “Por que as homenagens só vêm depois que morremos?” Ele elogia Lia e outras vozes vivas que são potentes, mas continuam invisíveis para uma mídia que prefere mitificar fantasmas a reconhecer guerreiras vivas.

Esses contrapontos não anulam a crítica de Lia — a tornam mais rica. Cristina pode não ser exemplo de virtude, mas é exemplo de complexidade. Foi vítima e algoz. Exagerada, sim — mas em um mundo que só vê as trans como aberração ou milagre, o exagero pode ser também um grito de existência.

Veneno talvez peque por idealizar. Mas acerta ao mostrar que, mesmo no caos, há beleza. E que cada mulher trans tem direito a ser lembrada como mais do que um escândalo. A série não canoniza Cristina — a humaniza. E isso, para muitas pessoas trans, é revolucionário.

Que tenhamos, portanto, o direito de discordar — como Lia. Mas que não nos esqueçamos também de abraçar — como Valeria. Porque entre a raiva e o afeto, vive a história real. E ela é sempre mais suja, mais brilhante, mais dolorosa do que qualquer ficção pode abarcar.

quarta-feira, 14 de maio de 2025

A Roda do Mundo

A roda do mundo virou – mil e uma vezes. As filhas da revolução tecnológica vieram ao mundo, com a promessa inequívoca de mudar tudo. Enquanto o mundo dos humanos continua recaindo nas suas mesmas mazelas de sempre, o mundo das máquinas anuncia que nunca mais será o mesmo.

Por dentro, também muda a roda do mundo do ser. Do descompasso à conciliação entre corpo e mente, entre sentir e mostrar. A transformação não está só nas máquinas; lembremos: é dela que a natureza é feita. A minha própria natureza se revelou numa dança hormonal, corporal, emocional, existencial.

O conflito original do paradoxo amoroso ganhou novas formas, mas, de algum modo, manteve os mesmos resultados, as mesmas sobras. Ainda sofrendo pelos mesmos homens que não merecem. Dando a sorte de, vez ou outra, esbarrar-me no espelho e encontrar-me, sozinha e comigo mesma. Mas o amor é maior que o paradoxo. Desejar o impossível nada mais é do que fazê-lo presente em minha carne e imaginação.

Ao mesmo tempo, já sou não mais a mesma. Graças a Deus, aos deuses, a Ísis, a Hécate e a Ganesha. Muito progresso em pouco tempo – devagar, mas estável. “Pequenos, grandes progressos.” Não me vejo no direito de reclamar. Chamam a isso de ser grata. Vivo como posso, cavando espaço para minhas ingênuas mordomias. A cada luta, aprendo e cresço, na dor.

domingo, 27 de abril de 2025

O baile das pseudociências

Você já reparou como algumas práticas bastante questionáveis acabam vestindo o jaleco da ciência sem jamais terem pisado num laboratório de verdade? Técnicas como a acupuntura, a ventosaterapia ou até mesmo a moda das sementes de maracujá atrás da orelha circulam livremente por hospitais, clínicas e, pasme, até mesmo no cardápio oficial do SUS. E não porque tenham sido aprovadas pelo exigente método científico, mas simplesmente porque conseguiram se instalar no imaginário popular como algo "naturalmente eficaz".

Para sermos justos, a ciência não pede milagres nem crenças inabaláveis; ela exige apenas que algo seja testável, refutável e replicável. Se alguém afirma que uma agulha reposiciona nossa energia vital, ou que ventosas removem toxinas do organismo sem qualquer alteração detectável em exames sanguíneos, seria de se esperar, no mínimo, uma explicação objetiva e consistente – ou pelo menos um estudo sólido que pudesse ser reproduzido em outros contextos ao redor do mundo. Contudo, na prática, o que encontramos são, em geral, apenas relatos pessoais entusiasmados, tradições respeitáveis – embora pouco interessadas em provas concretas – e uma fé, fantasiada de ciência, difícil de contestar.

E o fenômeno não se limita às práticas orientais populares. Multiplicam-se também métodos como a reflexologia podal, que acredita mapear o corpo inteiro na sola dos pés; o thetahealing, que propõe curas instantâneas através de ondas mentais e campos energéticos não mensuráveis; as barras de access, com suas promessas de "deletar crenças limitantes" tocando pontos invisíveis na cabeça; ou ainda a temida "psicologia cristã", que tenta misturar doutrina religiosa e intervenção clínica como se fossem inseparáveis ou mesmo solúveis uma na outra. Some-se a isso a explosão de terapias informais como a "coachterapia", onde se promete reprogramar vidas inteiras com uma coleção de frases motivacionais e fé inabalável. Cada uma dessas práticas, à sua maneira, reivindica espaço como se fosse uma extensão natural da ciência, mesmo carecendo de qualquer lastro sólido que a sustente.

Entender essa diferença é crucial. Não se trata de desprezar o conforto emocional que essas técnicas podem proporcionar, nem a força real que um acolhimento psicológico pode ter na vida das pessoas. Mas é fundamental separar aquilo que apenas alivia a alma daquilo que realmente pode curar o corpo; aquilo que resvala na categoria "efeito placebo" daquilo que funciona de forma comprovada, independente da fé. Entre colocar uma semente atrás da orelha e sentir-se melhor, e afirmar categoricamente que existe um mecanismo bioquímico ou fisiológico envolvido, existe um abismo que só a ciência pode atravessar – e, sejamos francos, até agora ela não atravessou para nenhuma dessas pseudociências mencionadas.

Claro, reconheço que essa exigência de rigor pode soar excessiva. Talvez seja mesmo. Se levada ao extremo, poderia, por exemplo, colocar sob suspeita práticas como a própria psicanálise, que também não se enquadra nos padrões tradicionais de testabilidade e replicação. E, no entanto, a psicanálise, com todas as suas lacunas metodológicas, carrega uma densidade clínica e uma complexidade humana que a diferenciam profundamente do universo das pseudociências. Ela não pretende (ou ao menos não deveria pretender) ser uma ciência; é, antes, uma forma de escuta e compreensão da subjetividade – algo que, por natureza, escapa às métricas mais rígidas da régua científica.

O que aqui defendo é a importância de aplicarmos a essas formas de "terapia alternativa" o nosso senso crítico. Justamente por respeitar a delicadeza de certas experiências humanas, é ser essencial mantermos um olhar atento e exigente, sem cair na armadilha fácil de equiparar tudo o que conforta com aquilo que cura de verdade. Respeitar tradições e crenças, sim; mas sempre com a lucidez de quem sabe distinguir entre a força simbólica de uma prática, de um lado, e, de outro, a robustez objetiva de um tratamento validado. Porque, no fim das contas, o problema não é que essas terapias alternativas existam – elas podem, sim, ocupar um espaço complementar, se utilizadas com responsabilidade e discernimento. O verdadeiro perigo começa quando pretendem substituir os tratamentos cientificamente comprovados, oferecendo ilusões em lugar de possibilidades reais de cura.

Quando uma paciente com câncer metastático, por exemplo, abandona a quimioterapia, a radioterapia e a cirurgia oncológica para apostar exclusivamente em intervenções espirituais ou métodos sem comprovação, o desfecho trágico não é obra do acaso. É o resultado direto de uma fé que, ao desprezar o conhecimento científico, transforma esperança em negligência fatal. Esse é talvez o exemplo mais doloroso – e mais claro – do que está em jogo: não é apenas uma questão de crença pessoal, mas de responsabilidade frente à vida.

Nossa saúde – essa frágil e preciosa travessia – merece o melhor dos dois mundos: sensibilidade, sim, mas também verdade.

domingo, 13 de abril de 2025

Onde foi que erramos?

No começo, quase ninguém percebeu. Era tudo sutil demais: um povo deslocado aqui, um rio que já não fluir como antes, uma nova cerca onde antes havia passagem. Tudo parecia caminhar como sempre – ou quase. Os discursos eram tão bem arrumados, cheios de palavras bonitas e promessas vazias, que era fácil acreditar que o mundo ia bem. Mas por trás dessa maquiagem de progresso, crescia algo torto: um pacto silencioso, onde poucos erguiam castelos com os escombros da vida de muitos.

As feridas foram se acumulando. Povos inteiros, guardiões de histórias que não cabem em livros, foram apagados como se nunca tivessem existido. O mar, que já foi casa de infinitas formas de vida, virou um deserto profundo, sufocado por plástico e pressa. Os bichos, antes companheiros, viraram produtos – domesticados, mutilados, moldados ao gosto humano, como se sentir dor fosse uma coisa pequena, desde que bem embalada. E as cidades cresceram tortas, erguendo suas torres brilhantes sobre alicerces de abandono. Lá embaixo, entre vielas e descuidos, o que restou foi um emaranhado de gente esquecida, onde tudo dói um pouco o tempo inteiro.

E como se tudo isso não bastasse, o poder – embriagado de si – se alimentou da violência. As guerras deixaram de ser tragédia e viraram negócio. Armas passaram a circular com mais facilidade do que comida ou cuidado. As prisões, antes anunciadas como resposta à injustiça, se transformaram em máquinas de lucro, onde a liberdade se media em cifras. Corporações e governos, numa dança estranha e perigosa, aprenderam a torcer verdades até que elas servissem aos seus fins. Usaram a fé, o medo, o desejo – tudo virou ferramenta de controle. E a gente, no meio disso tudo, foi aprendendo a calar.

Mas o planeta, ah… o planeta nunca cala. Ele responde. Não com discursos, mas com sinais. Um furacão que não pergunta nacionalidade. Uma pandemia que ignora fronteiras. Uma crise que não pede licença antes de entrar. Os alertas estavam por toda parte, mas os olhos acostumados ao brilho das vitrines preferiram desviar. Como se ignorar fosse o mesmo que curar. Como se o silêncio não fosse também escolha.

Nada disso é acaso. Não tem nada de sobrenatural nesse caos. É humano. Demasiadamente humano. São as decisões que tomamos, os abusos que normalizamos, os silêncios que escolhemos manter. A dor do mundo é reflexo de nossas construções – e também daquilo que deixamos de construir.

Mesmo assim, no meio desse cenário que por vezes parece insuportável, algo insiste em brotar. Há vozes que se levantam. Gente que escolhe não se acostumar. Jovens que rasgam os moldes antigos. Ativistas que desafiam o cansaço todos os dias. Pequenas revoluções nascem no cotidiano, às vezes quase invisíveis, mas que carregam em si a promessa de outros caminhos.

O mundo não está em guerra com a gente – ele está tentando sobreviver. E seu grito não é de vingança, mas de equilíbrio. De urgência. Talvez ainda dê tempo. Mas só se a gente decidir olhar de verdade. Porque, no fim das contas, mesmo quando tudo parece já escrito, o futuro ainda depende da forma como a gente escolhe virar a próxima página.

segunda-feira, 10 de março de 2025

O Brasil na coleira das elites do atraso

As elites brasileiras, essas criaturas fascinantes e um tanto previsíveis, vivem em dois mundos paralelos: um feito de soja e gado, e outro de brunchs sofisticados e apartamentos de design minimalista. E o mais interessante? Ambas acham que são as verdadeiras protagonistas dessa tragicomédia chamada Brasil. Mas, no fundo, fazem parte da mesma engrenagem — a tal "elite do atraso", como Erika Hilton bem define. Um grupo que, apesar das aparências, tem um compromisso inabalável com a manutenção de privilégios e com a resistência a qualquer avanço que ameace suas estruturas de poder.

De um lado, temos a elite do agronegócio, os senhores da terra, que veem o país como um grande tabuleiro de monoculturas. Para eles, a economia brasileira é basicamente uma questão de plantar, colher e exportar, sem tempo para essas “bobagens” de preservação ambiental ou direitos indígenas. São pragmáticos, influentes e têm o poder de dobrar políticas públicas ao seu bel-prazer, afinal, a bancada ruralista não existe por acaso. No seu imaginário, o Brasil é um gigante agrícola, e qualquer coisa que fuja desse roteiro é papo de gente “desconectada da realidade”.

Do outro lado, a elite urbana, os intelectuais de lifestyle, que moram em bairros arborizados e discutem questões sociais enquanto saboreiam um café especial de R$ 30 a xícara. São os entusiastas da educação de qualidade, da meritocracia seletiva e do consumo consciente — desde que não exija abrir mão de privilégios. Frequentemente, olham para o Brasil profundo com uma mistura de culpa e desdém, sem perceber que suas narrativas de progresso também sustentam desigualdades. No fim das contas, ambas as elites se encontram no mesmo dilema: querem um país melhor, mas só até o ponto em que isso não comprometa seu próprio conforto.

E é aí que entram vozes como Erika Hilton e Senhorita Bira, que escancaram as contradições dessa elite do atraso. Hilton, ao denunciar a jornada 6×1 — aquela maravilha que faz um trabalhador passar seis dias por semana moendo sua saúde para, no sétimo, descansar sem forças para nada — expõe o verdadeiro abismo entre quem toma as decisões e quem as sente na pele. A proposta de reduzir a carga semanal para 36 horas sem corte salarial não é uma ideia absurda, mas para essa elite, qualquer passo em direção ao mínimo de dignidade soa como uma afronta. Enquanto isso, Bira, em suas análises afiadas, expõe a farsa da polarização entre a elite do agronegócio e a elite urbana, mostrando que, no fim do dia, ambas operam pelo mesmo projeto: concentrar riquezas e terceirizar os prejuízos.

Porque, no fim das contas, a ameaça real não é econômica, e sim simbólica: o risco de que os trabalhadores percebam que podem exigir mais. E assim seguimos, num país onde as decisões vêm sempre de cima, enquanto o resto de nós apenas assiste, meio perplexo, meio conformado — e, talvez, cada vez menos disposto a aceitar o roteiro imposto.


quarta-feira, 5 de março de 2025

Orgulho em ser brasileira

Apesar de ser brasileira de corpo e alma, não sei se posso dizer que sou patriota. Há muitas coisas que eu amo neste país, e por isso não o trocaria por nenhum outro – ao menos, não como lar. Mas esse fervor nacionalista que tantos carregam definitivamente não me alcança. E, sinceramente, tem muito na cultura brasileira que não me encanta. Carnaval, futebol, essa paixão quase religiosa por certas tradições… não são para mim.

Mas se há algo que me faz sentir um orgulho genuíno de ser brasileira, é a beleza que habita este país. A vastidão da natureza, do verde intenso das matas ao dourado das praias, a diversidade de ecossistemas que fazem do Brasil um lugar único. E a comida! Nada se compara ao conforto de um arroz com feijão bem feito, ao cheiro do café passado na hora ou ao sabor de um queijo mineiro de verdade.

Acima de tudo, o que mais me toca é essa capacidade que temos de transformar desconhecidos em família. Esse calor humano, essa forma de acolher e criar laços sem esforço. E claro, há a democracia, a Constituição de 1988 – tão jovem, tão frágil e ao mesmo tempo tão essencial. No fim, são essas coisas que fazem com que, mesmo com todos os seus desafios, eu não me veja abandonando este país. Ele ainda é, apesar de tudo, meu lar. E acho muito difícil que isso mude algum dia.