
Onde foi que erramos?
No começo, quase ninguém percebeu. Era tudo sutil demais: um povo deslocado aqui, um rio que já não fluir como antes, uma nova cerca onde antes havia passagem. Tudo parecia caminhar como sempre – ou quase. Os discursos eram tão bem arrumados, cheios de palavras bonitas e promessas vazias, que era fácil acreditar que o mundo ia bem. Mas por trás dessa maquiagem de progresso, crescia algo torto: um pacto silencioso, onde poucos erguiam castelos com os escombros da vida de muitos.
As feridas foram se acumulando. Povos inteiros, guardiões de histórias que não cabem em livros, foram apagados como se nunca tivessem existido. O mar, que já foi casa de infinitas formas de vida, virou um deserto profundo, sufocado por plástico e pressa. Os bichos, antes companheiros, viraram produtos – domesticados, mutilados, moldados ao gosto humano, como se sentir dor fosse uma coisa pequena, desde que bem embalada. E as cidades cresceram tortas, erguendo suas torres brilhantes sobre alicerces de abandono. Lá embaixo, entre vielas e descuidos, o que restou foi um emaranhado de gente esquecida, onde tudo dói um pouco o tempo inteiro.
E como se tudo isso não bastasse, o poder – embriagado de si – se alimentou da violência. As guerras deixaram de ser tragédia e viraram negócio. Armas passaram a circular com mais facilidade do que comida ou cuidado. As prisões, antes anunciadas como resposta à injustiça, se transformaram em máquinas de lucro, onde a liberdade se media em cifras. Corporações e governos, numa dança estranha e perigosa, aprenderam a torcer verdades até que elas servissem aos seus fins. Usaram a fé, o medo, o desejo – tudo virou ferramenta de controle. E a gente, no meio disso tudo, foi aprendendo a calar.
Mas o planeta, ah… o planeta nunca cala. Ele responde. Não com discursos, mas com sinais. Um furacão que não pergunta nacionalidade. Uma pandemia que ignora fronteiras. Uma crise que não pede licença antes de entrar. Os alertas estavam por toda parte, mas os olhos acostumados ao brilho das vitrines preferiram desviar. Como se ignorar fosse o mesmo que curar. Como se o silêncio não fosse também escolha.
Nada disso é acaso. Não tem nada de sobrenatural nesse caos. É humano. Demasiadamente humano. São as decisões que tomamos, os abusos que normalizamos, os silêncios que escolhemos manter. A dor do mundo é reflexo de nossas construções – e também daquilo que deixamos de construir.
Mesmo assim, no meio desse cenário que por vezes parece insuportável, algo insiste em brotar. Há vozes que se levantam. Gente que escolhe não se acostumar. Jovens que rasgam os moldes antigos. Ativistas que desafiam o cansaço todos os dias. Pequenas revoluções nascem no cotidiano, às vezes quase invisíveis, mas que carregam em si a promessa de outros caminhos.
O mundo não está em guerra com a gente – ele está tentando sobreviver. E seu grito não é de vingança, mas de equilíbrio. De urgência. Talvez ainda dê tempo. Mas só se a gente decidir olhar de verdade. Porque, no fim das contas, mesmo quando tudo parece já escrito, o futuro ainda depende da forma como a gente escolhe virar a próxima página.
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