domingo, 7 de dezembro de 2025

Desvendando Lilith

Quando a gente fala de Lilith hoje, quase sempre já chega tudo junto, um pacote completo: “deusa”, “primeira mulher”, “demônio”, “Lua Negra”, “símbolo feminista”. Só que, se você volta para o que é historicamente concreto, Lilith começa de um jeito bem menos cinematográfico. Ela começa como um nome que habita o escuro, não como alguém com enredo.

Nas tradições do antigo Oriente Próximo, muito antes de Lilith virar assunto religioso no Ocidente, existiam categorias de espíritos ligados ao vento, à noite, ao que perturba o sono, ao que atravessa fronteiras. O termo que depois vai se aproximar de “Lilith”, com variações de língua e tempo, aparece conectado a esse campo de “forças noturnas”. Alguns autores e dicionários acadêmicos fazem essa ponte com clareza, mas também com cautela, porque a história não é uma linha reta, é uma rede de ecos.

Em Isaías 34:14, num texto poético de devastação, o profeta descreve ruínas tomadas por criaturas do deserto. Nesse catálogo estranho de animais e assombrações, o hebraico traz o termo “lilith” e diz que ali ela repousa e encontra descanso. 

É um verso que dá pano para muita tradução diferente. Tem Bíblia que prefere “criatura noturna”, tem Bíblia que escolhe dizer "coruja", tem tradução judaica que mantém “lilith” literalmente. Essa variação não é frescura, é sintoma de um detalhe real: o texto está apontando para um ser da noite cuja identidade exata é debatida, e o campo semântico puxa para o noturno e o selvagem. 

Repara o que isso significa. No nível bíblico, Lilith não é esposa de Adão. Não é romance. Não é “a primeira mulher”. É um nome colado no lado de fora do mundo habitável, onde a cidade não manda. E isso já diz muito sobre como esse símbolo vai ser tratado depois.

Quando a gente entra em textos judaicos posteriores, especialmente no universo rabínico, Lilith aparece mais como figura do imaginário do perigo noturno, ligada a vulnerabilidades humanas bem concretas, sono, solidão, riscos da noite. Em passagens talmúdicas ela surge como referência a um demônio feminino, às vezes alado, às vezes associado a ameaças noturnas. 

Aqui é importante um cuidado de linguagem, porque senão a gente faz anacronismo. “Demônio”, nesse contexto antigo, nem sempre é o demônio cristão como “oposição metafísica a Deus”. Muitas vezes é uma forma cultural de dar nome ao que é perigoso, invisível e sem controle. É um jeito de organizar medo e risco. E sim, isso frequentemente se mistura com controle social do feminino, porque o corpo feminino sempre foi território de ansiedade cultural. Só que reduzir tudo a “machismo” também simplifica demais. O ponto é: Lilith vira um rótulo de noite. A noite, quando ganha rótulo, vira suspeita.

E existe um degrau a mais nessa história: em textos do período do Segundo Templo, como os manuscritos de Qumran, “Lilith” aparece como parte de listas de forças espirituais ameaçadoras contra as quais se recitam hinos de proteção. Ali, ela é mencionada explicitamente ao lado de outras entidades demoníacas. 

Até aqui, ainda não existe “Lilith do Éden”. Existe Lilith como aquilo que mora do lado de fora, aquilo que precisa ser nomeado para ser contido.

O texto do Gênesis traz duas narrativas de criação humana colocadas lado a lado, com estilos e sequências diferentes. Em Gênesis 1:27, a criação aparece como um gesto único em que “macho e fêmea” são criados juntos. Já em Gênesis 2, o humano é formado do pó e, mais adiante, a mulher é construída a partir do lado do humano.

Isso é um fato textual. A explicação do porquê varia. Em leituras religiosas tradicionais, costuma-se harmonizar como se fosse a mesma história contada em dois níveis, primeiro o quadro geral, depois o close. Em leituras acadêmicas, é comum entender que são tradições diferentes costuradas no mesmo livro, e que até editores antigos perceberam essas diferenças e tentaram alinhar os textos para que convivessem.

Essa convivência cria uma fresta narrativa. E o ser humano ama frestas, porque fresta é onde a imaginação entra.

Se há “homem e mulher juntos” num capítulo e “a mulher depois” no outro, alguém, em algum momento, inevitavelmente pergunta: e a mulher do primeiro capítulo? Ela é a mesma do segundo? E se não for, o que aconteceu?

É daí que surge a ideia de uma mulher “anterior” como hipótese interpretativa. Nem sempre com o nome Lilith. Mas o terreno estava preparado.

A história mais famosa, aquela em que Lilith é criada do mesmo barro que Adão, recusa subordinação e parte, aparece de forma explícita em um texto medieval conhecido como Alfabeto de Ben Sira. Ele apresenta Lilith como a mulher “feita como ele”, o conflito sobre hierarquia, e o gesto decisivo: ela vai embora. 

Essa Lilith não nasce fazendo maldade. Ela nasce dizendo “não” para um arranjo em que ela precisaria encolher para caber. E, por um mecanismo bastante antigo de tradição, o “não” feminino, quando não é domesticado, vira ameaça. Depois disso, o resto vem quase automático: o símbolo é empurrado para o escuro, o escuro vira pecado, e o pecado vira criatura a ser combatida.

É assim que uma recusa vira “demonização”, no sentido literal da palavra. Não necessariamente porque alguém acordou mau, mas porque instituições de sentido têm dificuldade em tolerar uma personagem que escolhe partir.

Quando uma religião, qualquer religião, transforma obediência em virtude suprema, ela tende a desconfiar de figuras que escolhem liberdade em vez de permanência. A liberdade, nesses casos, passa a ser descrita como perigo, e não como consciência. Isso não destrói fé nenhuma. Só mostra o quanto fé, poder e narrativa às vezes caminham juntos sem confessar.

Historicamente, Lilith não começa como deusa. Ela começa como nome do noturno, do liminar, do deserto, do “fora”. Na Bíblia, ela é um termo enigmático num cenário de ruína. Em tradições posteriores, ela vira um ser perigoso que ronda a noite. E, na Idade Média, ela ganha biografia e voz, virando a mulher que parte.

O que acontece hoje é que muita gente lê tudo isso como mapa interior, não como zoologia espiritual. Lilith vira linguagem para falar de uma experiência humana recorrente: a sensação de que existe um preço para permanecer, e que esse preço, às vezes, é a própria voz.

Lilith atravessa séculos porque ela é o símbolo perfeito de um limite inegociável. Não o limite raivoso, mas o limite lúcido. Aquele que se impõe quando você percebe, com uma clareza simples e rara, que ficar pode custar a sua integridade.

Em algumas leituras, isso é “rebeldia”. Em outras, é “orgulho”. Em outras, é “pecado”. Eu gosto mais de chamar de coerência. Porque coerência é quando você não negocia a própria existência para manter a paz do jardim.

Lilith, no fundo, é essa pergunta que não envelhece: quantas vezes a gente chama de paraíso um lugar que só parece paraíso porque alguém está calado?


Referências

  • BIBLICAL ARCHAEOLOGY SOCIETY. Lilith. Bible History Daily. Acesso em 07 dez. 2025. 
  • SEFARIA. Genesis 1:27; Genesis 2:7; Genesis 2:22. Sefaria. Acesso em 07 dez. 2025. 
  • SEFARIA. Isaiah 34:14. Sefaria. Acesso em 07 dez. 2025. 
  • THE TORAH. Genesis’ Two Creation Accounts Compiled and Interpreted as One. TheTorah.com. Publicado em 11 out. 2023; atualizado em 30 nov. 2025. Acesso em 07 dez. 2025. 
  • SEFARIA. Eruvin 100b:26; Niddah 24b:10; Shabbat 151b. Sefaria. Acesso em 07 dez. 2025. 
  • SEFARIA. Alphabet of Ben Sira 23a-b (sheet). Sefaria. Acesso em 07 dez. 2025. 
  • JEWISH WOMEN’S ARCHIVE. Alphabet of Ben Sira 78: Lilith. JWA. Acesso em 07 dez. 2025. 

terça-feira, 8 de julho de 2025

O eco que não volta

Às vezes me pergunto se estamos sozinhos no universo. E às vezes, por mais estranho que pareça, percebo que talvez nem seja essa a questão.

Eu não tenho respostas cósmicas guardadas no bolso. Não sei como os telescópios funcionam direito, nem posso explicar o que exatamente um espectrômetro fareja no vácuo. Mas sei de uma coisa: quando olho para o tamanho do universo — esse desdobramento impensável de galáxias, poeiras e silêncios —, tudo dentro de mim grita que não pode ser só isso. Não faz sentido sermos os primeiros. As probabilidades seriam ridiculamente pequenas. A sensação é mais de estarmos num intervalo — talvez entre outros, talvez à parte — mas definitivamente não no início da fila.

Tem uma hipótese incômoda chamada Grande Filtro. Dizem que pode existir uma barreira em algum ponto da evolução, uma espécie de armadilha cósmica que impede a maioria das formas de vida de avançar até o nível de civilizações estelares. A ideia em si já é desconfortável, mas o pior é quando a gente começa a se dar conta do que significaria descobrir que a vida surgiu em outros lugares também — em Marte, por exemplo. Porque, se a vida aparece fácil... então o problema não é o começo. É o depois. Algo ali na frente engasga. E aí tudo muda de cor. A pergunta “cadê todo mundo?” vira um aviso: talvez todos tenham ido longe o bastante só para tropeçar do mesmo jeito.

E eu fico pensando… será que vamos tropeçar também? Será que somos só uma vela acesa no vento, dançando por descuido? Ou será que, justamente por sabermos disso, ainda dá tempo de escolher outro caminho? O silêncio do universo, às vezes, soa menos como abandono e mais como uma página em branco. Não sei se estamos esperando companhia… ou só algum consolo. Mas enquanto essa resposta não vem, talvez o mais importante seja seguir perguntando. Porque, no fundo, cada pergunta dessas não é só sobre estrelas. É sobre a gente. E sobre se ainda há uma chance de continuarmos sendo.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Religião, poder e silêncio

A Idade Média foi ou não foi a Idade das Trevas? Depende de quem pergunta. E, talvez mais ainda, de quem responde.

Quando olho para esse período, não o faço com os olhos frios de quem quer listar prós e contras, avanços e retrocessos. O que me atravessa é outra coisa. É quase visceral. A Idade Média, para mim, tem o gosto amargo de um tempo em que o poder religioso dominava corpos, mentes, desejos. Um tempo onde a dissidência – sexual, espiritual, afetiva – era tratada como ameaça. Onde o sagrado foi engaiolado em doutrinas, e o invisível perdeu sua fluidez para virar regra. A “luz” que se projetava vinha sempre de cima, centralizada, dura. E quem via outras luzes – mais suaves, dispersas, intuitivas – era perseguido e condenado. Como se só houvesse uma maneira de acessar o transcendental.

Claro que houve beleza naquele tempo. Catedrais que desafiam a gravidade, músicas que tocam camadas que a razão não explica. Mas nada disso muda o fato de que, para quem se reconhece numa espiritualidade plural, sincrética, autônoma – como é o meu caso – a Idade Média foi uma noite longa demais. Não por falta de ciência, mas por excesso de controle. Não foi uma era sem conhecimento, mas uma era em que certos conhecimentos foram sistematicamente sufocados. E eu não consigo romantizar isso.

Então, se me perguntam se a Idade Média foi a Idade das Trevas, eu devolvo: e se foi, mas não pelas razões que geralmente se diz? E se as trevas não estavam na ignorância, mas na arrogância de um sistema que achava que podia decidir o que era luz – e queimar o resto?

junho 09, 2025 ,,

MSN, Orkut e Outras Ruas Onde Morávamos

Houve um tempo em que a internet tinha cheiro de novidade e gosto de descoberta. Um tempo em que cada clique parecia abrir uma fresta mágica num mundo ainda sem algoritmos sufocantes, sem filtros perfeitos, sem pressa. Estamos falando dos anos 2000 – mais precisamente, entre 2006 e 2012 – quando os computadores ainda rodavam Windows XP e o barulhinho do MSN entrando ecoava como sinal de que alguém, do outro lado, pensava na gente. Era uma internet que pulsava de vida em suas imperfeições: com seus gifs piscantes, suas páginas coloridas do Orkut e seus layouts que pareciam ter sido desenhados com lápis de cor digital.

Era a era do Habbo Hotel brasileiro – aquele universo pixelado onde avatares dançavam, trocavam confidências e criavam seus próprios reinos em quartos decorados com pixel-art de afeto. Mas também era a era do Orkut, das comunidades que se tornavam confessionários públicos, e do Zapping Zone, que vibrava em sintonia com os clássicos da Disney como Hannah Montana, High School Musical, As Visões da Raven. Cada série, cada música, cada meme carregava consigo uma textura específica de tempo – quase como se, ao ouvir Bad Romance ou Firework, a gente conseguisse tocar com os dedos a atmosfera daquele quarto em que navegávamos escondidos de madrugada.

E havia também aquela estética – meio brega, meio genial – das páginas amadoras do Geocities e, anos depois, do Neocities. Sites pessoais cheios de glitter, fontes aleatórias, barrinhas de visitantes e uma ousadia visual que dizia: “isso aqui é meu”. Nada ali era padronizado. Cada espaço era expressão pura, criativa, infantil e sincera. Era uma web que ainda permitia ser feita à mão. Que era território de experimentação, não de desempenho.

Essa internet, com todas as suas cores vibrando fora da linha, deixou uma saudade que não cabe num post, nem numa playlist (embora eu tenha feito uma para tentar...). Porque o que sentimos falta não é só das ferramentas – mas da liberdade estranha e doce de se perder num lugar onde nada era muito certo, e talvez por isso, tudo fosse mais nosso.

O que é, afinal, a Verdade?

Existe uma pergunta que nos acompanha feito sombra, mesmo quando o dia parece claro: o que é verdade? Não a verdade gritante dos manuais ou a fria dos números, mas aquela que pulsa entre o que sentimos e o que sabemos. Onde, afinal, termina o fato e começa a opinião? E mais ainda – o que habita esse meio-termo silencioso, essa terra de ninguém onde boa parte do nosso saber parece acontecer?

Fatos costumam ser definidos como o que existe fora de nós, aquilo que permanece mesmo quando desviamos o olhar. Como pedras no caminho: duras, impassíveis. Mas até as pedras ganham nome, medida, sentido – e tudo isso é dado por quem as observa. A ciência, embora pretenda capturar verdades objetivas, não escapa dessa mediação. Nenhum fato nasce puro: ele atravessa teorias, instrumentos, contextos. O que chamamos de verdade empírica é, muitas vezes, uma construção sólida, sim, mas erguida sobre andaimes humanos.

Opiniões, por outro lado, são íntimas como cartas não enviadas. Elas brotam da história de quem somos, dos afetos que nos moldam, das dores que nos ensinaram a ver o mundo de certo jeito. E embora não possam ser provadas como teoremas, também carregam uma forma de verdade – mais emocional do que lógica, mais sentida do que demonstrada. Não são menos válidas por isso. Em certos casos, são até mais fiéis ao que realmente vivemos.

Entre esses dois extremos, mora o que escapa à dicotomia. Hipóteses, interpretações, saberes tácitos. Aquilo que ainda não é fato, mas também não é puro achismo. Existe um tipo de conhecimento que não se explica, mas se vive – uma intuição silenciosa que guia nossas decisões mais profundas, mesmo quando não conseguimos dar nome a ela. Talvez seja aí que resida o coração do saber: não em certezas absolutas, mas na coragem de habitar o ambíguo.

A epistemologia contemporânea já percebeu isso: que toda verdade carrega um pouco de invenção. Que todo fato é contado por alguém, de algum lugar, com alguma intenção. Saber, então, não é separar com pinça o real do ilusório, mas reconhecer os jogos de linguagem, os contextos e os afetos que moldam aquilo que chamamos de real. Porque no fim das contas, talvez a verdade seja menos uma descoberta e mais uma dança – entre o que o mundo é e o que escolhemos ver.

terça-feira, 3 de junho de 2025

junho 03, 2025

Cascata

Cai do alto de uma árvore a mais minúscula e delicada flor. Ela desce rodopiando, feito catavento, e pousa no desaguar de uma cachoeira. Segue o caminho das cascatas e, suavemente, embeleza o percurso com a sua própria fragilidade

sábado, 17 de maio de 2025

"Veneno" (2020)

A série Veneno (2020) é mais do que uma biografia televisiva — é um poema colorido à memória de Cristina Ortiz Rodríguez, a icônica “La Veneno”. Baseada no livro da jornalista trans Valeria Vegas, a série constrói não só o retrato de Cristina, mas também a própria jornada de Valeria, que se descobre e se reconstrói enquanto narra a vida de outra mulher. E é justamente nesse entrelaçamento de memórias que Veneno se torna, mais do que homenagem, uma travessia sobre identidade, representação e reparação.

Lola Rodríguez, em uma atuação absolutamente genial, dá vida à jovem Valeria com uma doçura contida, quase silenciosa — sua introspecção tímida contrasta com a explosividade de Cristina, criando uma tensão luminosa entre duas gerações trans. Valeria, com seus olhos assustados e firmes, não representa a militante caricata, mas a mulher que resiste no detalhe, no gesto contido, no corpo em processo. Ao lado dela, destacam-se também Jedet, Daniela Santiago e Isabel Torres, que interpretam Cristina em três fases distintas, cada uma entregando à personagem suas próprias feridas, força e carisma. E há ainda a maravilhosa Paca La Piraña, que interpreta a si mesma — uma das amigas mais próximas de Cristina, com quem compartilhou tanto os palcos quanto as dores da rua.

A recepção à série foi avassaladora: aclamada pela crítica, abraçada pelo público, premiada em diversos festivais e elogiada internacionalmente. Mas, como toda história que vira mito, Veneno também despertou controvérsias — e entre elas, talvez a mais contundente seja a crítica feroz feita por Lia Bracho, youtuber e mulher trans brasileira.

Lia recusa Cristina como referência. Vê nela uma figura “desequilibrada”, celebrada por uma mídia que apenas queria o espetáculo de sua agressividade. Para ela, Cristina reforçou estigmas, atacou outras travestis, e foi mais símbolo de escândalo do que de avanço. Lia não romantiza: denuncia. Diz que Cristina “morreu pela própria boca”, que a série lucrou em cima de um corpo já apagado, e que homenagens só vieram quando não era mais preciso pagar por elas.

Mas essa crítica, tão legítima quanto ferida, não está sozinha no debate. Comentários no próprio vídeo de Lia trazem contrapontos importantes. O usuário @caioxavis, por exemplo, lembra o contexto da época: sem internet, sem representações positivas, Cristina blindava sua dor com a única armadura que possuía — o exagero. “Ser afrontosa era uma forma de se proteger do preconceito. Claro que ela não tinha a cabeça no lugar depois de tanta experiência ruim.”

Outro comentário, de @gus.tavo., resgata o que a própria Luísa Marilac sempre afirma: “Por que as homenagens só vêm depois que morremos?” Ele elogia Lia e outras vozes vivas que são potentes, mas continuam invisíveis para uma mídia que prefere mitificar fantasmas a reconhecer guerreiras vivas.

Esses contrapontos não anulam a crítica de Lia — a tornam mais rica. Cristina pode não ser exemplo de virtude, mas é exemplo de complexidade. Foi vítima e algoz. Exagerada, sim — mas em um mundo que só vê as trans como aberração ou milagre, o exagero pode ser também um grito de existência.

Veneno talvez peque por idealizar. Mas acerta ao mostrar que, mesmo no caos, há beleza. E que cada mulher trans tem direito a ser lembrada como mais do que um escândalo. A série não canoniza Cristina — a humaniza. E isso, para muitas pessoas trans, é revolucionário.

Que tenhamos, portanto, o direito de discordar — como Lia. Mas que não nos esqueçamos também de abraçar — como Valeria. Porque entre a raiva e o afeto, vive a história real. E ela é sempre mais suja, mais brilhante, mais dolorosa do que qualquer ficção pode abarcar.