
"Veneno" (2020)
A série Veneno (2020) é mais do que uma biografia televisiva — é um poema colorido à memória de Cristina Ortiz Rodríguez, a icônica “La Veneno”. Baseada no livro da jornalista trans Valeria Vegas, a série constrói não só o retrato de Cristina, mas também a própria jornada de Valeria, que se descobre e se reconstrói enquanto narra a vida de outra mulher. E é justamente nesse entrelaçamento de memórias que Veneno se torna, mais do que homenagem, uma travessia sobre identidade, representação e reparação.
Lola Rodríguez, em uma atuação absolutamente genial, dá vida à jovem Valeria com uma doçura contida, quase silenciosa — sua introspecção tímida contrasta com a explosividade de Cristina, criando uma tensão luminosa entre duas gerações trans. Valeria, com seus olhos assustados e firmes, não representa a militante caricata, mas a mulher que resiste no detalhe, no gesto contido, no corpo em processo. Ao lado dela, destacam-se também Jedet, Daniela Santiago e Isabel Torres, que interpretam Cristina em três fases distintas, cada uma entregando à personagem suas próprias feridas, força e carisma. E há ainda a maravilhosa Paca La Piraña, que interpreta a si mesma — uma das amigas mais próximas de Cristina, com quem compartilhou tanto os palcos quanto as dores da rua.
A recepção à série foi avassaladora: aclamada pela crítica, abraçada pelo público, premiada em diversos festivais e elogiada internacionalmente. Mas, como toda história que vira mito, Veneno também despertou controvérsias — e entre elas, talvez a mais contundente seja a crítica feroz feita por Lia Bracho, youtuber e mulher trans brasileira.
Lia recusa Cristina como referência. Vê nela uma figura “desequilibrada”, celebrada por uma mídia que apenas queria o espetáculo de sua agressividade. Para ela, Cristina reforçou estigmas, atacou outras travestis, e foi mais símbolo de escândalo do que de avanço. Lia não romantiza: denuncia. Diz que Cristina “morreu pela própria boca”, que a série lucrou em cima de um corpo já apagado, e que homenagens só vieram quando não era mais preciso pagar por elas.
Mas essa crítica, tão legítima quanto ferida, não está sozinha no debate. Comentários no próprio vídeo de Lia trazem contrapontos importantes. O usuário @caioxavis, por exemplo, lembra o contexto da época: sem internet, sem representações positivas, Cristina blindava sua dor com a única armadura que possuía — o exagero. “Ser afrontosa era uma forma de se proteger do preconceito. Claro que ela não tinha a cabeça no lugar depois de tanta experiência ruim.”
Outro comentário, de @gus.tavo., resgata o que a própria Luísa Marilac sempre afirma: “Por que as homenagens só vêm depois que morremos?” Ele elogia Lia e outras vozes vivas que são potentes, mas continuam invisíveis para uma mídia que prefere mitificar fantasmas a reconhecer guerreiras vivas.
Esses contrapontos não anulam a crítica de Lia — a tornam mais rica. Cristina pode não ser exemplo de virtude, mas é exemplo de complexidade. Foi vítima e algoz. Exagerada, sim — mas em um mundo que só vê as trans como aberração ou milagre, o exagero pode ser também um grito de existência.
Veneno talvez peque por idealizar. Mas acerta ao mostrar que, mesmo no caos, há beleza. E que cada mulher trans tem direito a ser lembrada como mais do que um escândalo. A série não canoniza Cristina — a humaniza. E isso, para muitas pessoas trans, é revolucionário.
Que tenhamos, portanto, o direito de discordar — como Lia. Mas que não nos esqueçamos também de abraçar — como Valeria. Porque entre a raiva e o afeto, vive a história real. E ela é sempre mais suja, mais brilhante, mais dolorosa do que qualquer ficção pode abarcar.