sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Brasília: um abismo calculado

Imagina-se Brasília não como uma simples cidade planejada, mas como uma miragem nascida de uma ambição quase mitológica. O sonho de arrancar o poder da beira-mar, onde o oceano balançava suavemente a sede governamental no Rio de Janeiro, e jogá-lo no coração do Brasil — uma região de vastas savanas, cheia de horizontes vazios e promessas por realizar. A ideia de uma nova capital, uma cidade onde os ventos carregavam não só poeira, mas as aspirações de um país inteiro, não foi uma invenção repentina. Ela rondava as mentes brasileiras desde o século XIX, com a Constituição de 1891 murmurando um desejo de interiorização, mas foi com Juscelino Kubitschek que esse delírio ganhou forma física.

Nos anos 50, JK vestiu o Brasil com a roupagem de uma nação disposta a desafiar o tempo. "50 anos em 5", ele prometeu, numa mistura quase poética de audácia e otimismo que hoje parece surreal. E assim, Brasília, esboçada com a caneta afiada de Lúcio Costa e os traços futuristas de Oscar Niemeyer, saiu do papel direto para o Planalto Central. Uma cidade que, com suas curvas e linhas ousadas, parecia desafiar as regras da arquitetura e, quem sabe, até as da própria gravidade.

Mas não nos enganemos: Brasília não foi só um exercício de estilo. Foi uma tentativa genuína de redistribuir o poder. Afinal, tirar o foco do eixo Rio-São Paulo e empurrá-lo para o interior do país parecia uma forma de equilibrar as peças no tabuleiro. Claro, uma capital no meio do nada simbolizava, de certo modo, a esperança de que o país inteiro pudesse se ver refletido naquele espaço recém-criado.

Só que a realidade, como sempre, tem um jeito de subverter as melhores intenções. Brasília, com todo o seu design de ficção científica, logo revelou uma face menos utópica. Os espaços amplos e setores isolados criaram mais do que distâncias físicas; construíram abismos sociais. Quem tinha dinheiro, se acomodou confortavelmente no Plano Piloto, cercado por praças deslumbrantes e edifícios que mais pareciam esculturas. Já a maioria, a massa de trabalhadores que mantinha a cidade de pé, foi exilada para as cidades-satélites. Ali, distante dos brilhos da capital, surgiram as periferias invisíveis, onde o futuro não parecia tão glamouroso.

É irônico, não? Uma cidade construída para integrar, mas que, no fim, fez o oposto. A promessa de unir as diferentes regiões do país se perdeu em avenidas largas demais para acolher o encontro espontâneo entre as pessoas. O modernismo que tanto impressiona os olhos distantes foi, para muitos, o símbolo de uma exclusão calculada. Talvez essa seja a verdadeira marca de Brasília: uma cidade que, enquanto tenta ser o futuro, deixa o presente para trás.

Hoje, viver em Brasília é um privilégio caro. Quem quer o conforto do Plano Piloto precisa pagar o preço — alto, diga-se de passagem. E quem não pode, faz como tantos outros: se instala nas regiões administrativas, lidando com horas de trânsito para chegar ao trabalho. A geografia da cidade dita o ritmo da vida. Distâncias físicas se tornam distâncias sociais, e, quanto mais o tempo passa, mais Brasília parece uma ilha, isolada do Brasil real.

É nesse contraste que podemos entender um pouco mais sobre o que a construção de Brasília realmente significou. Não foi só concreto e aço, mas também expectativas que nunca se concretizaram. Talvez, ao olhar para o horizonte de Brasília, a sensação não seja de olhar para o futuro, mas para um presente que escorreu pelas mãos. E isso, para quem quer ensinar essa história, pode ser uma lição poderosa.

Se for levar para a sala de aula, o caminho talvez seja o de quebrar as ilusões e expor os contrastes. Brasília é um exemplo perfeito de como o progresso e a desigualdade podem caminhar lado a lado, mesmo em uma cidade planejada para ser uma nova era. Estimular os estudantes a pensarem sobre como uma utopia pode se transformar em distopia é um exercício crítico. E não seria interessante provocá-los a imaginar como teria sido se a capital tivesse conseguido, de fato, unir e não separar? Aposto que seria uma discussão reveladora, daquelas que deixam as ideias flutuando pelo ar.

No fim das contas, Brasília não é apenas um lugar. É uma metáfora viva do Brasil: complexa, bonita, cheia de promessas, mas sempre com uma certa distância entre o ideal e a realidade.



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